Silêncio





Era agosto, não me pergunte qual dia, evito saber quando começa, torço logo para que chegue ao fim.
Quanto silencio cabe numa vida?
Eu me vestia de silêncio enquanto mecanicamente continuava. Não sei se vou, se fico. Um desespero dolorido, calado como todos outros desesperos de agosto.
Era fechar os meus olhos pra lembrar da mão na minha boca silenciando meu grito por causa de um monstro que me tocava. Era o silêncio do medo que hoje me faz duvidar da minha própria memória. Será que eu estou ficando louca? todas aquelas lembranças nojentas de quem tentou roubar minha inocência aos 7 anos de idade... me lembro de perguntar em silêncio onde tava tudo mundo que não o impediu? O choro dentro do banheiro esperando que alguém chegasse. Alguma falsa sensação de que eu não estivesse sozinha.
Será que ninguém nunca se perguntou porque sempre me isolei? nunca quis ninguém do meu lado?
Porque a minhas coisas estavam numa bolsa e de repente eu não estava mais na minha casa? Eu nunca voltei.
Ninguém nunca me perguntou se eu queria ir...
Eu nunca pude dizer que aquela carta não era minha, os gritos e ofensas calavam minha voz. Você nem me permitiu chorar.
Nunca tive chance de chorar quando podia, era preciso esperar pelo silêncio de todos dormindo. Era preciso esperar o escuro, a noite, pra deixar as minhas lágrimas falassem por mim.
Para que  servia aquela água que você me mandou banhar e não me secar? E aquelas velas acesas escondidas pelos cantos da casa, nos lugares altos onde eu não podia alcançar. Pra que serviam?
Porque aquele homem pediu a camisa do meu pai e pôs junto com as outras coisas no chão da sala? Eu tive tanto medo. Porque o cheiro entranho? porque as oferendas?
Porque meu pai nunca voltou?
Porque o sangue na sua testa?
Porque eu tive que ver todas essas coisas? E tantas outras que não me deixam em paz?
Porque eu nunca pude me despedir? Eu fui a única a não poder dizer nada...
Fui a única aos 4 anos que deitei no teu peito e não ouvi nada... Ainda acho que a culpa é do médico, vô.

Eu me vestia de silêncio, de medo, de dor. Nunca tive a liberdade da palavra. Só dizia o que podia ser dito. Nunca protestei, se eu protestasse era um castigo. Aceitava o que me era destinado, uma renuncia gritava no peito. Me sentia sem poder respirar.
De todas as pessoas que mais amei na vida, recebi mentiras, silêncio, rejeição e gritos. Despedidas caladas, nem uma palavra.
É a dor de agosto que dilacera meu peito, um grito abafado pelo meu silêncio imposto!
O que eu faço? Se nem direito a verdade eu tenho? A quem peço a permissão ao grito?
É como se eu só tivesse uma estrada a minha frente e vontade nenhuma de caminhar. Estrada essa que nem é minha. 
A vida, as coisas, vão me empurrando, me obrigando a ir. Eles riem de mim.
Eu dizia tudo isso a Mariana, ela era a única que me escutava e consolava, mas tinha dias que ela também não me dizia nada. Ficava no canto escuro do quarto, quase não posso ver seu rosto, só ouço sua respiração desajustada, como quem se esforça pra continuar. 
Mariana... Meu nome que foi usurpado de mim, me tirado depois de dias de vida. Será que eu teria o mesmo destino se continuasse a ser ela?
Eu gritei por socorro, me respondeu o silêncio dizendo onde era o meu lugar, embora eu nunca tenha saído dele.
Me sinto tão confusa quanto essas palavras, me sinto até indigna delas.
Meu Deus, vem e me diz o que faço? falta tão pouco tempo...

Me calo então como em todos os outros anos, como todos os dias, esperando que agosto termine e que ele não fique escondido, pronto para desaguar em outros meses, como ele faz sempre.

Sorte de quem tem direito ao grito, eu tenho direito ao silêncio, por isso me calo.


Kaká.